Sobre gêneros e bolhas: A impossível missão de rotular um jogo

O que define o gênero de um jogo eletrônico? Como acontece esse processo? Quem fica de fora desse nosso hobbie, videogames, quando somos muito específicos?

Com base nessas perguntas, vou defender que, ao decidirmos usar termos “especializados”, limitamos o alcance sobre o universo de jogos eletrônicos, alienando mais pessoas do que aproximando, consequentemente reduzindo o apelo dos videogames.

Ombudsman

Hoje, é meu papel ser chato e bancar o ombudsman dos nossos meios, tanto para o jornalismo quanto para a indústria de jogos.

Não bastasse “ombudsman” ser uma palavra fora do português, por ironia, falarei da apropriação de palavras entre diferentes idiomas. São os famosos estrangeirismos. Neste caso, ombudsman é uma função essencialmente jornalística. Um termo técnico, um jargão.

Caso você não saiba, “ombudsman” não é um palavrão, mas uma palavra de origem sueca que significa “ouvidor”.

No jornalismo, ombudsman é uma função exercida para representar os interesses do leitor, das fontes e dos personagens no noticiário. Como? A figura do ombudsman escolhe livremente sobre o que vai escrever – sem censura, sem responder a ninguém – traçando críticas ao próprio veículo ou apontando falhas na abordagem de certos temas.

A redação do Pizza Fria quando todos já entregaram suas análises. (Imagem: Domínio Público / Biblioteca do Congresso dos EUA)
A redação do Pizza Fria quando todos já entregaram suas análises. (Imagem: Domínio Público / Biblioteca do Congresso dos EUA)

Ao ler o artigo “Roguelite ou roguelike? Conheça as características dos gêneros”, assinado pelo colega pizzaiolo Matheus Jenevain, uma barragem de ideias conflitivas se rompeu dentro de mim. A centelha de inspiração para este texto é uma espécie de antítese para o texto do Matheus.

Primeiramente, um aviso: a ideia aqui é dialogar com o artigo citado, não tentar desconstruí-lo. Minhas opiniões pertencem a mim; as de Jenevain, a ele; as suas, a você. Sugiro encarar as noções seguintes como uma crítica à nossa bolha – seja de jornalistas falando para jornalistas, seja de jogadores falando para jogadores.

Além disso, tenho a plena consciência de que minha fala dificilmente mudará algo na indústria ou nas nossas conversas cotidianas e análises: a propagação inflamável, voraz e veloz de novos conceitos está muito a frente do alcance da minha voz.

Por isso, gostaria de reforçar que a intenção deste artigo é propor uma dimensão interpretativa àquilo que damos por certo – esses inúmeros gêneros estranhos (e peculiares) nos games, que absorvemos e aceitamos sem perguntar de onde vieram ou o que significam; sem perguntar quem estamos excluindo da conversa ao utilizá-los. Queremos falar para todos, mas levantamos muros sem ver e esquecemos de criar pontes de tão mal habituados com a certeza daquilo que falamos.

As complicadas traduções. "Nos dê bebida, pagamos amanhã!"; "Essa é velha!" (Imagem: Domínio Público / Biblioteca do Congresso dos EUA)
As complicadas traduções. “Nos dê bebida, pagamos amanhã!”; “Essa é velha!” (Imagem: Domínio Público / Biblioteca do Congresso dos EUA)

A etimologia nos videogames, um dicionário à parte

Talvez seja só comigo, mas sinto falta de uma discussão aprofundada sobre a etimologia das palavras que usamos quando falamos de videogames.

Claro, a língua portuguesa tem se desenvolvido por séculos e, especificamente no caso do Brasil, grande parte de seu léxico vem de uma mistura riquíssima das línguas nativas com línguas africanas, além do espanhol, italiano, francês, alemão… A lista é imensa.

Algumas chegaram emprestadas, outras tantas foram se adaptando. Essas palavras adaptadas são conhecidas como cognatas quando ainda soam parecidas às suas primas em outros idiomas. É só lembrar das aulas de língua estrangeira para acender um alerta: as palavras falsas cognatas podem até soar e ter grafias similares, contudo significam algo completamente diferente.

Seja como jornalista, seja como jogador, meu papel é sempre me adaptar às inovações e às necessidades do leitorado, pensando no conteúdo moldado por tais fatores. Por outro lado, é obrigatório preservar o propósito e estilo de certas coisas, a essência de alguns termos. É preferível usar as palavras em português quando forem apropriadas.

Pensando em jogos: quantas vezes não falamos customizar em vez personalizar? Line-up em vez repertório? Rating em vez de avaliação? Lembro de ver uma prévia (preview?) sobre The Legend of Zelda: Twilight Princess, lááá pelos 2000 e poucos, sobre como Wolf Link tinha a capacidade de aguçar seus “sensos” [sic]. A má tradução veio de “senses“, sentidos.

Alguns termos já até se consolidaram, pois performance é falada quase sempre a respeito do desempenho das máquinas. Ou do hardware, como preferir. Pode ser um PC (personal computer, mas leia-se pê-cê!) ou um console (que o português do Brasil pegou do inglês que emprestou do francês)… Que amava Lili que não amava ninguém. Já os portugueses e espanhóis dizem consola. Enquanto isso, alguns países da América Latina dizem computador enquanto outros dizem computadora.

É impossível falar de videogames sem falar de estrangeirismos. A maior parte talvez seja de anglicanismos, algo que nos faz inventar fonemas e enfiar o som anglicano das vogais de uma palavra desconhecida. Está estampado na grafia da palavra. Vai dizer que nunca ouviu ninguém falando Crono Traiguer em vez de Crono Triguer/Trigãr? A segunda opção é a mais próxima do ideal para se referir ao lendário RPG da Square, Chrono Trigger. Duvida?

Apesar disso, não vou nem me preocupar em falar sobre a influência das origens e da globalização sobre toda a terminologia que nós, jogadores, usamos. Seria mais que inviável, seria impossível. A mensagem é: “de vez em quando, devemos parar e pensar no que falamos”.

Este meio altamente tecnológico relativamente recente, a força dos Estados Unidos em sua indústria e fatores como a internet são os ingredientes que você precisa ter para deixar sua mente borbulhando.

Seções em uma locadora por gênero cinematográfico

Para falar dos gêneros nos videogames, preciso falar dos gêneros cinematográficos.

Caso eu e você sejamos contemporâneos, então você já deve ter ido alguma vez a uma locadora de filmes – na melhor das hipóteses você não se lembra das fitas VHS. Não se preocupe em entregar a idade. Passou numa locadora, né? Aquele monte de caixonas quadradas, o desejo de um filme disputado não estar alugado, o cheiro de plástico e de vinil. A plaquinha “por favor, rebobine antes de devolver”.

Se sim, então deve se lembrar que a organização costumava ser por seções rotuladas por placas com os gêneros ação, animação, aventura, comédia, drama, faroeste, horror, suspense, e tantos outros.

Acontece que as categorias listadas acima são conhecidas como “gêneros cinematográficos”. Quando cineastas, críticos e estudiosos precisaram detalhar um pouco mais, criaram os subgêneros para se aprofundar em especificidades. Os filmes de desastres, de artes marciais, de vingança, de espionagem são, por exemplo, subgêneros de filmes de ação.

A lista de gêneros e de subgêneros não é fechada aos citados e existem híbridos, óbvio. Afinal de contas, como classificaríamos “De volta para o Futuro 3”? Aventura, ficção científica, fantasia e faroeste?

Mas, numa simples comparação, os gêneros cinematográficos costumam ser mais coesos que os de jogos eletrônicos.

Assim como “De volta para o Futuro 3” transita por várias categorias, jogos possuem mecânicas híbridas. Desde o começo da indústria de games, jogos passaram a adotar mecânicas de outros títulos, misturando gêneros, com gêneros, com subgêneros, com mecânicas… Provavelmente num nível até mais aprofundado que o cinema jamais sonhou. Corta para a história do Rogue-like.

Artistas franceses do século 18 imaginaram esse Twisted Metal-like nos 2000s. (Imagem: Domínio Público/France in XXI Century. War cars)
Artistas franceses do século 18 imaginaram esse Twisted Metal-like nos 2000s. (Imagem: Domínio Público/France in XXI Century. War cars)

Rogue-like como gênero, Rogue-like e nada mais (e olhe lá!)

Rogue é um jogo de 1980 para computadores. Mergulhando em estrangeirismos inevitáveis, já naquela época, essa história de gênero era um pot-pourri danado (viu o que rolou aí?): Rogue é um “dungeon crawler” com cenários gerados proceduralmente e com permadeath. “Dungeon crawler” por si só é um subgênero de RPG (“Role-Playing Game”, jogo de interpretar papeis); “proceduralmente” é um anglicanismo que veio com a informática e deveria ser “processualmente”, de processos. Neste caso, são cenários criados aleatoriamente (nem tão aleatório assim, pois seguem uma série de regras, mas aí é outro assunto!). Uh! Mas tais termos já estão pra lá de consolidados.

A combinação dessas mecânicas parece ter acontecido primordialmente com Rogue, por isso temos o termo Rogue-like. Vamos lá: o sufixo (às vezes prefixo) like, em inglês, passa o sentido de sentido de “parecido a”, “semelhante a”. Alguém childlike, por exemplo, é parecido a uma criança, infantil; alguém like-minded tem a cabeça parecida a outra pessoa.

Como trabalhei muito tempo com o Manual de Estilo da Associated Press, tenho a tendência de escrever Rogue-like, pois usa-se o hífen para evitar casos com três letras L (shell-like) e quando a palavra for um substantivo próprio, como o título do jogo. Enfim, decisões estilísticas. Isso nos leva à seguinte conclusão: Rogue-like significa “parecido com Rogue”. Ponto.

Os Rogue-likes existem desde que Rogue existe, contudo ganharam popularidade nos últimos anos graças aos jogos indies (ops!) que fizeram remixagens criativas de permadeath (morte definitiva), cenários “proceduralmente” gerados e tantas outras coisas. (Observação pessoal: só videogames mesmo para subverterem a noção de morte como algo decisivo e me fazerem escrever um parêntese isso.)

Essa popularidade renovada dos Rogue-likes levou à criação de novas combinações mecânicas criativas, assim como derivou um novo termo: Rogue-lites. Essa noção tácita coletiva dos jogadores sugere que a distinção reside no legado a cada morte. Rogue-lites seriam versões leves (light, lite) por permitirem jogadores carregarem algum tipo de melhoria ou de armamento mesmo após a morte.

Mesmo assim, eu diria que eles são parecidos com Rogue, ou seja, são Rogue-likes. Nada mais que Rogue-likes.

Será que o "gênero" Rogue-like da moda se parece tanto assim com Rogue? (Imagem: Domínio Público / Wikipedia)
Será que o “gênero” Rogue-like da moda se parece tanto assim com Rogue? (Imagem: Domínio Público / Wikipedia)

Será que sou eu, ou não existe, todavia, um Souls-lite? Tal grau de especialização perde o sentido de categorizar e oferecer direcionamento, transformando-se em algo exclusivo. Demon’s Souls, Dark Souls e suas continuações, BloodborneSouls-like representa apenas preconceitos, frutos da imaginação com a conexão de outros termos, para quem nunca jogou os títulos da FromSoftware.

Ao explicar um jogo para alguém, quero que leitores entendam da maneira mais fácil possível, não da mais complicada. Quero incluir novos jogadores no campo, não o contrário.

Afinal de contas, de quantos subsubsubgêneros precisamos?

Metroidvania e as bolhas de exclusão para não jogadores e jogadores casuais

O caso dos Rogue-likes é um de muitos que bebem em especificidades e nos tornam em pós-doutores do meio que tanto conhecemos.

O problema é a exclusão provocada ao falarmos de forma tão críptica. Você pode conhecê-los como jogadores casuais, ou infrequentes, ou não habituais. Eles já devem ouvir ou ler uma matéria especializada e pensar que estão lendo grego, chinês. Jogadores em potencial, ou seja, pessoas que têm interesse em descobrir o meio devem sentir-se igualmente alienadas. Acredito que gere desmotivação de mergulhar nessa enciclopédia louca de categorizações. A pessoa não saberia nem por onde começar a explicar o que ela gostaria de jogar.

Lembra da palavra ombudsman no começo? Duvido muito que a maioria soubesse, a não ser os jornalistas, relações públicas e afins. Eu poderia falar uma infinidade de jargões da comunicação e alienar os colegas e leitores de outras áreas.

Esse fenômeno, natural para quem faz parte do meio, é um contrapeso para democratizar qualquer conversa, para tornar o assunto verdadeiramente interdisciplinar. Infelizmente, nós, gamers, falamos a nossa própria versão do juridiquês, do economês – nosso linguajar codificado, que, para piorar, muitas vezes não é técnico nem mesmo preciso.

Outro exemplo que me vem à cabeça e que precisamos combater é a junção de títulos para (tentar) definir um gênero. O caso hors concurs (dificulta, não é mesmo?) é o do termo Metroidvania. Pessoalmente tenho tentado parar de usá-lo.

Para a linguística, Metroidvania é uma aglutinação ou amálgama, um termo que define a palavra resultante da junção de outras duas palavras. Um exemplo fácil no Brasil, para os amantes de futebol, é o Grenal, isto é, o confronto entre Grêmio e Internacional.

Ou o portunhol falado na tríplice fronteira.

Outro exemplão é “faroeste”. Lá em cima citei “De volta para o futuro 3” sendo um Faroeste. O termo é uma aglutinação de palavras estrangeiras incorporadas ao português – “far“, distante/longínquo, e “west“, oeste.

Macacos jogando gamão. Gamão? (Imagem: Domínio Público / The British Museum)
Macacos jogando gamão. Gamão? (Imagem: Domínio Público / The British Museum)

Metroidvania deriva do nome de dois jogos com estilos similares – Metroid e Castlevania. Aliás, acho essa história de “jogos com estilos similares” bem contestável, já que a semelhança se fundamenta principalmente nos primeiros jogos destas franquias, cada qual tendo evoluído de forma muito distinta com novas entradas.

Contudo, vou tentar seguir com a ideia geralmente difundida: os jogos requerem idas e vindas em busca de novas habilidades por um mapa enorme. A cada habilidade adquirida, devemos regressar (ou, em bom gamingnês, backtrack) e explorar cantos previamente inalcançáveis.

Fale que um jogo é um Metroidvania para um não jogador ou para alguém que joga ou navega pouco por notícias da indústria. “Han?!” é a reação mais provável. O agravante do crime: o nome de ambos os jogos são aglutinações linguísticas. Metroid é a junção de “metro” e “androide” (em inglês, android), duas palavras que os desenvolvedores julgaram futurísticas para descrever a roupagem da heroína Samus Aran.

Neste caso, “metro” provavelmente veio do filme expressionista alemão “Metrópolis”, de 1927. Lembra dos subgêneros? “Metrópolis” é um filme de drama e de ficção científica da escola artística do expressionismo alemão! Ufa!

Poster do filme de Fritz Lang “Metrópolis” mostra Maria se transformando em máquina. “Metro” se aglutina com “androide” e forma Metroid. (Imagem: Domínio Público)
Poster do filme de Fritz Lang “Metrópolis” mostra Maria se transformando em máquina. “Metro” se aglutina com “androide” e forma Metroid. (Imagem: Domínio Público)

Enquanto isso, Castlevania seria a amálgama de “Castle” (do inglês, castelo) e Transilvânia, a região história onde hoje é a Romênia e teria abrigado o Conde Drácula.

Os argumentos podem variar bastante de acordo com a bagagem e vivências de cada um, mas é complicado querer misturar e especializar tantas coisas debaixo de um mesmo guarda-chuva. Metroid Prime é meu jogo favorito e o primeiro Metroid que joguei foi Super Metroid. Mas o primeiro Castlevania que joguei de fato foi Castlevania: Lords of Shadow, que não tem nada a ver com nenhum dos Metroid que eu tenha jogado! Nem na mecânica, e nem na temática.

Aliás, um assunto para outro dia: essas classificações que fazemos, dizem mais sobre as mecânicas ou sobre as temáticas dos jogos? Por enquanto, estou tentado a dizer que quase sempre falamos das mecânicas.

Fico pensando no terror, no enorme dilema dos jornalistas de videogames nos anos 1980 e 1990, quando não podiam definir Super Metroid ou Super Castlevania IV como um Metroidvania. Justo os expoentes do gênero nunca foram Metroidvanias.

Aposto que eram “meros jogos” de exploração e aventura.

Aposto que o público geral entendia melhor a mensagem em uma época quando não nos enclausurávamos em tantas bolhas e sub-bolhas.

Uma pequena conclusão para uma discussão infinita

Esse recorte de ideias e de paralelos foi exposto deste jeito para que cada um construa sua verdade, isto é, se vale a pena mergulhar nessa superespecialização de gêneros. E aí, vale a pena? Minha opinião transita entre “não” e “apenas quando realmente houver motivo”, já que fazemos um verdadeiro desserviço à indústria dos games quando alienamos potenciais jogadores.

O simples fato de buscarmos diferenciações tão mínimas para explicações tão desproporcionalmente cansativas coloca em xeque a viabilidade dessa categorização muito especializada.

Para todos os não jogadores, a situação é uma subversão do Mito da Caverna de Platão: em vez sair para a luz da descoberta, o indivíduo é eternamente mantido na caverna. Vontade para sair não lhe falta, mas ele só ouve que sua saída está condicionada a ter chaves para abrir portas. Chaves como um conceito desconhecido para abrir uma porta que não existe.

Reconheço em plena consciência a minha incapacidade de mudar nomenclaturas no mundo dos games.

Apesar disso, a profissão e a vontade de querer mais pessoas jogando me obrigam a buscar princípios como acessibilidade, universalidade e clareza. Consequentemente ampliaremos o reconhecimento dos jogos mais como meio de entretenimento, menos como brinquedo.

A conversação é mais rica com mais pessoas participando. A língua também é rica e está constantemente evoluindo, mudando; pegando palavras emprestadas e emprestando palavras.

Carlos Maestre

Jornalista que passou a pesquisar acessibilidade digital pela constante necessidade de inverter o eixo Y - desde GoldenEye 007. Cresceu com a Nintendo e fã da (atual) Microsoft, quer a velha Rare de volta. Além de achar divertido caçar conquistas, sofrerá uma intervenção a qualquer instante por culpa de Stardew Valley.